Todo santo
dia, dona Aparecida lavava roupa no tanque, afinal o marido dela não tinha
dinheiro pra comprar uma máquina de lavar, nem tinha lugar pra botar no
apartamento de 25m². Não tinha jeito. Ela precisava deixar sempre umas mudas de
roupas limpas pra marido trabalhar e pra seu menino mais velho ir pra escola, a
única das quatro crianças que estudava. Os dois mais novos, um de seis e outro
de dois anos, quase nunca usavam roupas. Geralmente se vestiam apenas pra
passear no centro de domingo e pra receber o pastor em casa. Dona Aparecida
tinha vergonha de receber o pastor. Toda vez que ele vinha, dona Aparecida
ficava pedindo desculpa de tudo, do cheiro de mofo, da louça suja, do calor, do
berreiro das crianças, e tudo mais. Na verdade, o que ela dizia pro marido era
que ela tinha vergonha mesmo é de ser pobre.
O pastor era
abençoado, morava numa casa linda na Moóca. Dona Aparecida fazia faxina pra ele
uma época, mas ele disse que precisava ajudar outra irmã necessitada e
dispensou dona Aparecida. Agora ela passava a maior parte do dia em casa, na
maioria deles. Quase não conseguia faxina. O marido, camelô, às vezes levava
ela pra trabalhar com ele na rua, mas ela quase não vendia nada, não tinha
jeito pra isso. Ficava em casa, lavando roupa na sua varanda pequenininha, que
dava pra dentro do prédio, um lugar feio e fedorento, ali no Brás. Bem
diferente da casa do pastor, que tinha até máquina de lavar, uma grandona!
-
Pastô Antônio vai ora pra nóis consegui ganha mais dinhero...
O
marido de dona Aparecida trabalhava todo dia também, de domingo a domingo, nas
ruas da cidade, geralmente no centro, vendendo de tudo, porcarias eletrônicas chinesas,
tralhas de plásticos paraguaias, produtos genéricos de todos os tipos e
origens, às vezes vendia doces e até espetinho de gato. Vendia bem até, mas o
dinheiro ainda era pouco, não dava pra botar todos os meninos na escola, nem
comprar a máquina de lavar, nem se mudar pra um apartamento maior. Muitas vezes
faltava até dinheiro pra comida. Dona Aparecida aprendeu desde cedo a
economizar comida. Antes de vir pra São Paulo, quando menina, já passava fome
em algum lugar do Norte ou Nordeste, nem ela sabia dizer exatamente. Aprendeu
com a vida a viver com o mínimo, mas ainda assim, sonhava com a máquina de
lavar.
De
vez em quando, pra tirar um extra, Dona Aparecida cuidava dos filhos das suas
vizinhas, muitas delas mães solteiras, que trabalhavam durante o dia todo. O
minúsculo apartamento ficava inundado de crianças, que quase sempre
transbordavam pros corredores, apartamentos vizinhos, e não raro até pra rua.
Difícil controlar a criançada toda. Dona Aparecida, sempre muito quieta, se
esforçava pra berrar e botar ordem em tudo, e quase sempre, depois de horas a
fio na batalha, conseguia, pelo menos, manter as crianças dentro do prédio,
porque na rua era perigoso.
-
Tru dia o fio da Neide quasi foi atropelado...
Ficar
em casa era bem mais seguro. Mas não menos difícil. Dona Aparecida parecia sufocar
ali. Era como se existisse alguma coisa nela que fosse maior que o próprio
apartamento. Muito provavelmente a sua fé. Se existia algo que ela poderia se
orgulhar de ter em abundância era fé. Mas ela não se orgulhava, não demonstrava
isso, era humilde demais pra isso. E tudo agradecia a Deus. E tudo pedia
desculpas pro pastor. Afinal o pastor era o homem de Deus, o homem santo, que
tinha tudo que as bênçãos de divinas podiam dar, uma família linda, saudável,
uma esposa muito bem vestida, aquele casarão, a máquina de lavar. Era por isso
que Dona Aparecida não deixava nunca de contribuir com o dízimo, o pastor disse
que só assim Deus daria em dobro. E ela esperava, esperava o dobro, sem cobrar
de Deus, mas esperava. Se o pastor e sua bela mulher conseguiram, ela e o
marido também conseguiriam.
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Paciênça Luiz! Paciênça! Num duvida do podê e da grória du Senhô...
Talvez
ele duvidasse. Talvez por isso eles nunca tiveram uma máquina de lavar. O
marido de Dona Aparecida não ia muito na Igreja não, dizia que não tinha tempo
pra ir no culto, que a Igreja era muito longe e que ele precisava trabalhar até
tarde. Mesmo assim ele dava o dinheiro do dízimo pra ela, e às vezes ouvia a
palavra de Deus pelo radinho de pilha, quando tinha pilha. As crianças também
não iam muito no culto, geralmente os meninos fugiam da mãe nessas horas.
Sumiam pelo prédio, pelo Brás. Ela morria de medo de que eles não voltassem
mais, e fervorosamente orava pelos filhos.
-
Meus mininu é meu tisoro, pastô...
Quando
tinha visita do pastor, ela fazia questão de que os filhos estivessem limpos,
arrumados, quietos e sentados na salinha. O pastor ia uma vez a cada dois ou
três meses. Era um evento. Fazia várias visita no mesmo prédio. Reclama um
pouco do cheiro, dizia às mães pra lavar bem a casa e dar sempre banho nas
crianças. Era o que Dona Aparecida fazia, quando tinha água nas torneiras.
Mesmo assim o cheiro sumia. Ela até se acostumou com isso, já nem reparava
mais, nem comentava. Era normal. Só o pastor que sempre gostava de lembrar os moradores
sobre o fedor.
-
A casa do pastô é muito da limpa! Eu trabaiei lá, Neide. Uma bença!
Mas
a casa dela não. Nem o prédio. Nem as crianças. Nem ela pópria, que tomava
banho duas ou três vezes na semana, quando tinha água. Mas as roupas do marido
e do menino mais velho estavam sempre limpas. Sempre. Com muito custo, lavadas
a mão, com o pouco de água que dava pra guardar, com o suor do rosto, com a fé
e a esperança de um dia comprar uma máquina de lavar.
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