- O Messias das erva? - pergunta
o menino.
-
Sei não... A vizinha ali falô que era um sinhôr que fazia uns remédio aí... -
ela respondeu.
-
Ele memo.
Eles
sobem algumas dúzias de ruas até chegar numa casinha toda mal-acabada. Lugar
nada acolhedor. Com cheiro de comida velha, café de um mês inteiro, e muitos
aromas estranhos que variavam de chá até qualquer coisa parecida com maconha. É
o que muitos vizinhos comentavam. Que ele era drogado, viciadão mesmo. Esse
papo de curandeiro era mentira. Enganação. Golpe. Mas muita gente comprava as suas
“poções”. Muita gente mesmo. Tanto que ele pouco saí da casinha podre que
mora. Quem via ele andando por aí, geralmente via colhendo as plantas, nos
terrenos baldios (ele invadia terrenos privados), nas beiras de
estrada, praças públicas, enfim. Vivia, pelo jeito, basicamente disso.
-
É ali, ó!
A
mulher parou, olhou, e ficou meio sem reação. Parecia que tinha ficado indecisa
entre bater palmas, chamar pelo “Seu Messias!”, ou sei lá, um “Oh di casa!”. O
menino olhou pra ela, com aquela carinha maldita de que esperava uma reação
dela. A senhora olhou o menino nos olhos por um instante. Ela hesitava. Afinal,
que tipo de pessoa haveria de ser esse Messias curandeiro? Nome santo já tinha.
De salvador. Aquele que salvaria o casamento dela.
O
povo ali do bairro era dividido. Tinha gente que não só acreditava nos poderes
mágicos daquele caboclo como dava testemunho dos seus atos milagrosos. Teve
gente até sugerindo que ele abrisse uma igreja. Mas num deu certo não. Ele não
saia de casa mesmo. Mas pelo menos uma vez na semana ia no mercadinho na esquina
da sua rua com a estrada vicinal que ligava o bairrinho periférico da cidade a
zona oeste e ao centro. Mundinho esquecido. Mas procurado por aqueles que buscam
“cura”. Curioso,
dizia a moça do caixa do mercadinho, era que o curandeiro sempre comprava
bastante cachaça. Tinha gente que dizia que ele usava a bebida nas suas poções.
Tinha gente também que dizia que ele passava o dia todo enchendo a cara. Dois ou
três ali da rua viviam comentando que às vezes ouviam o Messias gritando
sozinho em casa.
“Doidão, aqueli lá, mano!”
“Seu
Messias tem pobrema, fia... precisa de médico de verdade, viu...”
“Neide!
Eu tenhu certeza, mulé! Quantas vês eu passava ali e ovia o hómi metenu cuma mulé!”
“Nada...
aquilé coisa du além, memo...”
Pois é, ninguém
sabia com certeza.
A moça, que
não devia fazer a mínima idéia de quem de fato pudesse ser o Seu Messias, cruzou
quilômetros de metrô e trem, levou horas, pra encontrar aquele senhor
desconhecido, indicado pela empregada, que poderia resolver seus
problemas. Foi avisada pra não ir de carro, chama muita atenção. Era assim que funcionava. No boca a boca. Não tinha publicidade não.
Nem folheto, nem colagem em poste (ali nem tinha muito poste), nem site, nem
Facebook (quem dirá internet). Nada além do testemunho vívido dos beneficiados
pelo dom divino do Messias. Aquele Messias de uns cinqüenta e tantos anos de
idade, maltratado pelo tempo, de expressão cansada, como se batalhasse uma
batalha eterna dentro de si mesmo, um martírio psíquico infinito. “Dá medo ni muita
genti aqui da vila”.
Medo.
Exatamente o que a moça sentiu quando viu sair daquela portinha uma figura judiada,
suja, quase desdentada, lambendo os beiços de um jeito bem asqueroso. Os olhos
apertados, parecendo sofrer uma dorzinha fraca, mas persistente, em alguma parte
bem sensível do seu corpo. Como um torturado
do inferno, saindo da sua casa tão fedorenta quanto ele. O menino guia,
rapidinho, vazou dali.
- O senhor é o
Seu Messias?
Sem resposta.
Olhares profundos de desentendimento.
- Seu Messias?
– ela insiste, meio ofegante.
O desgraçado
do curandeiro surgiu do nada. Deu um puta susto nela. Ela ficou tremendo por
pelo menos uns trinta segundos. Até a respiração voltar a um ritmo normal. Ele fez
um gesto grotesco com a mão, que ela deve ter interpretado como um “Espere”,
afinal, consentiu com a cabeça e permaneceu imóvel. Ele voltou à casa, e ficou uns
minutos lá dentro. Gritou algumas coisas. Será que ela entendeu?
Era fim de
tarde já. O tempo nublado deixava o dia mais escuro. Faltava pouco pra escurecer de vez
e ela parecia ter pressa. Parecia ansiosa. Que fazia ele lá dentro? Como não
ficar ansiosa? Aqueles berros estranhos, às vezes assustadoramente selvagens. Barulhos
de lâminas, coisas que raspam, sabe-se lá. E parece que tem fogo também, fritura.
Mas não tem fumaça. Em poucos instantes um cheiro forte de chá. E o Messias
sai, com uma garrafa pet na mão, com um bagulho amarelado dentro. Bem feio.
Cheira chá de folha forte, coisa amarga que nem o capeta.
- É ciqueinta!
– ele berra babando.
Ela olha de
lado, abre a bolsa, tira a carteira, abre, tira algumas notas, conta, separa, guarda
a carteira e fecha a bolsa. Se aproxima e dá na mão asquerosa dele.
- O senhor tem
certeza que é isso mesmo que eu preciso?
Corajosa.
Resolveu questionar o Messias.
Ele só balançou
a cabeça, “SIM!”.
“Aqueli negócio qui eli dá pru
zotro bebê é veneno, fia... Dexa doido...”
“Faiz
um bein danado, rapá!”
“Sei
não... Dona Odila falô qui passô mau, mai disse que é assim memo... É, ela tomô
sim, por causa do Nélso...”
“Ah
si fudê! Tem troxa que cai nessa porra!”
Ela
ainda parecia duvidosa. Olhava enigmaticamente pra garrafa com o líquido denso,
meio gelatinoso.
-
E quanto eu tenho que tomá?
-
Né pá sióra não... – disse o Messias com sorriso dolorido.
-
É pra quem?
-
Pru machu.
-
Quanto?...
Nenhuma
resposta. Seu Messias virou de costas e voltou pra dentro de casa. Ela ficou
bem ali, desnorteada. Não recebeu as devidas instruções, parecia perdida,
olhava e olhava pra garrafa. Saiu dali, se afastou um tanto da casa. Olhava
pros lados, quase ninguém na rua. Olhava pra garrafa. Que merda. E agora, quanto
tomar? Era seu marido que deveria tomar? Como fazer ele tomar?
Mas
a maior preocupação dela naquele momento deveria ser o transporte. Precisava
voltar segura pra estação de trem. Pegaria o metropolitano de volta pro centro.
O bairrinho já parecia bem menos amistoso naquele horário (se é que já era durante
o dia, pelo menos pra ela, moça acostumada com a carinha bacana do Bela Vista).
Era
fácil. Era só descer pela rua principal. Resolveu botar a garrafa na bolsa e
descer mais rápido. Não demorou muito. A estação, abandonada pelo Estado, servia
de point pra figuras bem grotescas da noite periférica. Mendigos, bêbados, pequenos traficantes e alguns
malucos.
-
Amém Messias! Etá hómi bão dos milagre! Das lágrima de Deus!...
Olhos
e ouvidos atentos, a moça prestava atenção no discurso messiânico do bêbado.
Parece que lhe despertou a curiosidade. Abriu a bolsa. Tirou a garrafa. Olhou a
garrafa de pertinho. Tentou sentir o cheiro. Fez cara de dúvida. Cheirou de
novo. Acabou abrindo a garrafa. Cheirou de novo. Nova expressão. Olhou a
garrafa, por mais tempo agora, com mais cuidado ainda. Por fim, deu um gole.
Não
parecia gostoso não. Em instantes, ela cambaleou. Tinha um moço ali que se
levantou e ajudou ela. Segurou ela pelo braço e ajudou ela a se sentar. Parecia
melhorar um pouco. Até vomitar. E vomitou muito. E suou frio. Até apagar.
“Devia sê
preso! Fica danu droga pru povo aí!’
“Verdade, Creide! Ela viu foi Deus!”
“Mano...
foi loco... Várias mina...”
“Ah!
Eu cridito sim!”
“Erva
boa. Tem qui bebê é tudu...”
A moça estava
agora numa casinha simples e terrivelmente desordenada. Cabeça pesada.
A luz baixa só deixava aparecer a figura sombria de um homem forte, sem roupa,
de frente pra ela. Ela sentia o cheiro forte de esquecimento e vazio. A
atmosfera ao mesmo tempo sensual e terrível arrepiava a espinha dela a cada minuto.
Ficava excitada e tensa. Queria ficar ali e transar, quando também ansiava o
momento de ir embora. Nem sabia mais pra onde. É como se não pudesse ir mais
pra lugar nenhum. Ficaria ali pra sempre. Esquecida. Mas saciada por aquele
homem forte e viril. E depois de transar com ele, tentou fugir pela porta, que dava
no nada escuro e deprimente de um mundo esquecido, antigo e perdido. Ela correu
e tropeçou no próprio desespero. Acordou na estação terminal da linha de trem.
Ainda precisava baldear pro metrô. Ficou imóvel por um minuto. Não demorou muito
pra chegar em casa. O
marido estava lá, e dormia, depois de um pesado dia de trabalho. E o homem
forte e viril também estava lá. Era isso, pelo jeito. Ela não se preocuparia
mais. Teria ele ali, pra cuidar dela. Pra salvar ela do que ela mais tinha
medo, do esquecimento. Do desaparecimento. De apodrecer num apartamento fino do Bela Vista. Mas não com o seu amante ali. Não na sua casa pobre e suja, que ela poderia
visitar sempre, sempre que quisesse, sempre que abrisse a garrafa. Sempre que
visitasse aquele santo mágico, mendigo místico da periferia. Sempre que procurasse
Seu Messias.