Faziam alguns minutos que o senhor de paletó escuro esperava o trem.
Olhava insistentemente pra morena de belas pernas que eventualmente retornava o
gesto, ora se mostrando tímida ora cheia de si. A velha senhora com um lenço
vermelho logo notou e fechou a cara. O trem se aproximava da plataforma quando
o senhor de paletó escuro se levantou do banco em que estava, ao lado da morena
de belas pernas, e foi se posicionar para o embarque. Já a senhora de lenço
vermelhou demorou a se adiantar, esperando o abrir das portas automáticas para
sair do seu lugar e tomar o trem.
Quando as pessoas
entram nesse tipo de trem, naquele determinado horário, tendem a lutar por um
assento vazio. Logicamente à senhora de lenço vermelho foi concedido um lugar especialmente
reservado para idosos, deficientes físicos, gestantes e pessoas com crianças de
colo. Assim avisava sempre a voz feminina suave nos falantes das composições. O
senhor de paletó escuro teve de ficar em pé, pois não tinha a idade muito
avançada, mas por sorte, ficou logo ao lado da morena de belas pernas, que
também teve de viajar em pé.
Não tardou a senhora de
lenço vermelho desatou a falar no celular. Ao seu lado, um jovem que lia um
livro, pareceu incomodado com este fato. Talvez estivesse incomodado com a
total futilidade do assunto o qual a senhora de lenço vermelho falava com
sabe-se-lá-quem. Narrava todo seu percurso de trem e metrô pela cidade, como se
cada detalhe fosse uma jóia de acontecimento, tão importante para a humanidade
quanto para o receptor do outro lado da linha, ou pra ela mesma. Talvez o jovem
que lia um livro só estivesse incomodado com o terrível barulho que a senhora
produzia enquanto conversava. “Ela bem que podia calá a boca, merda…”, ele deve
ter pensado.
Mas logo o jovem que
lia um livro parou de fazê-lo e se pôs a observar atentamente as pernas da
morena de belas pernas, em pé a poucos centímetros dos seus olhos. O senhor de
paletó escuro percebeu o olhar sagaz do jovem que antes lia um livro, e sorriu.
“Filha da puta, safado… Não deve ter nem pelo no saco e já tá secando perna de
mulher…”, foi o que os olhos do senhor de paletó escuro pareciam ter dito
naquele instante. Ele parecia ao mesmo
tempo estar desdenhando e apoiando a atitude desinibida do jovem que antes lia
um livro.
Na estação seguinte, a
morena de belas penas conseguiu um assento, graças a um rapaz magro e pálido
que descia naquela estação e lhe cedeu gentilmente seu lugar. A expressão do jovem que antes lia um livro
foi de desapontamento. Que não durou muito, pois assim que se abriram as portas
do vagão, uma linda loira de saia curta e uma formosíssima morena de pele bem
clara entraram no vagão, ficando de pé ao seu lado. Os olhos do senhor de
paletó preto se encheram. A senhora de
lenço vermelho (ainda presa ao celular) parecia se incomodar um pouco com a
falta de discrição dos olhos marotos a sua volta. Nesse momento, o assunto que
discutia com alguém no telefonema mudou bruscamente pra um tom agressivo e
rancoroso (alguma coisa envolvendo seu ex-marido, filhos, brigas de bar e
violência doméstica). E novamente o jovem que antes lia um livro pareceu se
incomodar com o falatório da senhora de lenço vermelho, que agora praticamente
berrava ao aparelho. “CALA A BOCA, SUA FILHA DA PUTA!”, denunciou seu olhar
ferino.
Então o senhor de
paletó escuro recebeu uma chamada em seu celular. Diferentemente da senhora de
lenço vermelho, ele tinha uma fala muito mais polida, refinada, um discurso de
uma qualidade retórica que induzia os presentes alí no vagão a olhar
atentamente pra ele, para sua graça e leveza no falar, sua postura de homem
firme, que sabe o que fala, que intende de tudo um pouco, um intelectual, um
homem de negócios, um especialista gourmet, e tudo mais o que lhe coubesse nas
vivas frases que deslizavam-lhe boca-pra-fora. E ao falar, olhava
incessantemente para todos os lados, e via que os outros o olhavam, e quando se
cruzavam os olhares, desviava num desdém meticuloso, quase falso. “Isso, olhem
pra mim”.
A morena de belas
pernas, enquanto isso, se olhava num pequeno espelho de mão, maquiando-se,
parecendo ser a única a não notar o incrível retórico que se apresentava alí,
gratuitamente, à um público silencioso mas atento. O jovem que antes lia um
livro, agora ouvia música em seu aparelho portátil. Olhava mais pela janela que
para as pessoas. Parecia ter decidido se isolar da realidade comum daquele
vagão, naquele momento, que se resumia aos mundos desconhecidos da senhora de
lenço vermelho e do senhor de paletó escuro. Aqueles dois falantes enchiam o
vagão com seus discursos distintos mas igualmente intrusivos. A situação foi se
agravando, tornando-se quase um embate. Quem atrairia mais olhares? Qual dos
assuntos seria mais interessante prestar atenção?
O jovem que ouvia
música parecia não se importar. Nem a morena de belas pernas, que agora, já
maquiada, tinha uma postura de mulher fatal, um olhar de mulher caçadora,
escolhendo suas presas. “Pobres mortais”. Seu assento era um trono e seus
súditos a olhavam incessantemente, sempre de canto, de modo discreto mas
incisivo. Quando seu olhar fatal cruzou o do jovem que ouvia música ela pareceu
sentir seu poder como ainda não tinha sentido naquele dia. Leu nos olhos do
jovem que ouvia música tudo o que queria ouvir. E os olhos dele realmente
disseram “Quero trepar loucamente com você, agora!”. No que os olhos dela
responderam “Coitado de você”.
A senhora de lenço
vermelho finalmente desligou o aparelho celular, talvez por perceber que seus
berros já não eram mais ouvidos, assim como a pastosa e macia fala do senhor de
paletó preto também já era ignorada. Passaram-se três estações desde que eles
começaram a se embater. E logo o senhor de paletó preto também cessou de falar.
E o silêncio pareceu
constrangedor para ambos os falantes. Foi um momento de desestabilidade. O
senhor de paletó preto olhava para todos os lados, meio frenético, e assim
também fazia a senhora de lenço vermelho. A morena de belas pernas tinha os
olhos fixos no sinal luminoso que anunciava as estações seguintes e o jovem que
ouvia música tinha o olhar perdido no horizonte. Só voltou sua atenção
novamente para os passageiros quando as belas moças que estavam em pé ao seu
lado conseguiram assentos. Ele parecia ter esquecido que elas estavam lá, e seu
olhar tornou a expressar desapontamento. “Merda…”.
Ao chegar na estação
terminal, onde todos haviam de sair do trem, o senhor de paletó preto mirou de
forma libertina as pernas da morena de belas pernas. “Puta que pariu, que
gostosa”. A senhora de lenço vermelho lançou um olhar feroz em direção a morena
de belas pernas. “Vagabunda, vadia…” Esta, por sua vez, olhava apenas pra
frente, cabeça erguida, corpo ereto, silhueta dançante, se esgueirando entre os
passantes. “Ai que ódio desse povo nojento!” Acabou trombando com o rapaz que
ouvia múcica. Este, por sua vez, ao pisar fora do trem, olhou nos rostos e nos
olhos de cada um e sorriu. Parecia reflexivo, mas o desdém que lhe saltava do
rosto ficou exposto, e encheu o lugar, esbarrando em cada um dos presentes ali,
que estranhamente, e simultaneamente, fecharam a cara.
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