domingo, 18 de novembro de 2012

Viagem de trem


Faziam alguns minutos que o senhor de paletó escuro esperava o trem. Olhava insistentemente pra morena de belas pernas que eventualmente retornava o gesto, ora se mostrando tímida ora cheia de si. A velha senhora com um lenço vermelho logo notou e fechou a cara. O trem se aproximava da plataforma quando o senhor de paletó escuro se levantou do banco em que estava, ao lado da morena de belas pernas, e foi se posicionar para o embarque. Já a senhora de lenço vermelhou demorou a se adiantar, esperando o abrir das portas automáticas para sair do seu lugar e tomar o trem.
            Quando as pessoas entram nesse tipo de trem, naquele determinado horário, tendem a lutar por um assento vazio. Logicamente à senhora de lenço vermelho foi concedido um lugar especialmente reservado para idosos, deficientes físicos, gestantes e pessoas com crianças de colo. Assim avisava sempre a voz feminina suave nos falantes das composições. O senhor de paletó escuro teve de ficar em pé, pois não tinha a idade muito avançada, mas por sorte, ficou logo ao lado da morena de belas pernas, que também teve de viajar em pé.
            Não tardou a senhora de lenço vermelho desatou a falar no celular. Ao seu lado, um jovem que lia um livro, pareceu incomodado com este fato. Talvez estivesse incomodado com a total futilidade do assunto o qual a senhora de lenço vermelho falava com sabe-se-lá-quem. Narrava todo seu percurso de trem e metrô pela cidade, como se cada detalhe fosse uma jóia de acontecimento, tão importante para a humanidade quanto para o receptor do outro lado da linha, ou pra ela mesma. Talvez o jovem que lia um livro só estivesse incomodado com o terrível barulho que a senhora produzia enquanto conversava. “Ela bem que podia calá a boca, merda…”, ele deve ter pensado.
            Mas logo o jovem que lia um livro parou de fazê-lo e se pôs a observar atentamente as pernas da morena de belas pernas, em pé a poucos centímetros dos seus olhos. O senhor de paletó escuro percebeu o olhar sagaz do jovem que antes lia um livro, e sorriu. “Filha da puta, safado… Não deve ter nem pelo no saco e já tá secando perna de mulher…”, foi o que os olhos do senhor de paletó escuro pareciam ter dito naquele instante.  Ele parecia ao mesmo tempo estar desdenhando e apoiando a atitude desinibida do jovem que antes lia um livro.
            Na estação seguinte, a morena de belas penas conseguiu um assento, graças a um rapaz magro e pálido que descia naquela estação e lhe cedeu gentilmente seu lugar.  A expressão do jovem que antes lia um livro foi de desapontamento. Que não durou muito, pois assim que se abriram as portas do vagão, uma linda loira de saia curta e uma formosíssima morena de pele bem clara entraram no vagão, ficando de pé ao seu lado. Os olhos do senhor de paletó preto se encheram.  A senhora de lenço vermelho (ainda presa ao celular) parecia se incomodar um pouco com a falta de discrição dos olhos marotos a sua volta. Nesse momento, o assunto que discutia com alguém no telefonema mudou bruscamente pra um tom agressivo e rancoroso (alguma coisa envolvendo seu ex-marido, filhos, brigas de bar e violência doméstica). E novamente o jovem que antes lia um livro pareceu se incomodar com o falatório da senhora de lenço vermelho, que agora praticamente berrava ao aparelho. “CALA A BOCA, SUA FILHA DA PUTA!”, denunciou seu olhar ferino.
            Então o senhor de paletó escuro recebeu uma chamada em seu celular. Diferentemente da senhora de lenço vermelho, ele tinha uma fala muito mais polida, refinada, um discurso de uma qualidade retórica que induzia os presentes alí no vagão a olhar atentamente pra ele, para sua graça e leveza no falar, sua postura de homem firme, que sabe o que fala, que intende de tudo um pouco, um intelectual, um homem de negócios, um especialista gourmet, e tudo mais o que lhe coubesse nas vivas frases que deslizavam-lhe boca-pra-fora. E ao falar, olhava incessantemente para todos os lados, e via que os outros o olhavam, e quando se cruzavam os olhares, desviava num desdém meticuloso, quase falso. “Isso, olhem pra mim”.
            A morena de belas pernas, enquanto isso, se olhava num pequeno espelho de mão, maquiando-se, parecendo ser a única a não notar o incrível retórico que se apresentava alí, gratuitamente, à um público silencioso mas atento. O jovem que antes lia um livro, agora ouvia música em seu aparelho portátil. Olhava mais pela janela que para as pessoas. Parecia ter decidido se isolar da realidade comum daquele vagão, naquele momento, que se resumia aos mundos desconhecidos da senhora de lenço vermelho e do senhor de paletó escuro. Aqueles dois falantes enchiam o vagão com seus discursos distintos mas igualmente intrusivos. A situação foi se agravando, tornando-se quase um embate. Quem atrairia mais olhares? Qual dos assuntos seria mais interessante prestar atenção?
            O jovem que ouvia música parecia não se importar. Nem a morena de belas pernas, que agora, já maquiada, tinha uma postura de mulher fatal, um olhar de mulher caçadora, escolhendo suas presas. “Pobres mortais”. Seu assento era um trono e seus súditos a olhavam incessantemente, sempre de canto, de modo discreto mas incisivo. Quando seu olhar fatal cruzou o do jovem que ouvia música ela pareceu sentir seu poder como ainda não tinha sentido naquele dia. Leu nos olhos do jovem que ouvia música tudo o que queria ouvir. E os olhos dele realmente disseram “Quero trepar loucamente com você, agora!”. No que os olhos dela responderam “Coitado de você”.
            A senhora de lenço vermelho finalmente desligou o aparelho celular, talvez por perceber que seus berros já não eram mais ouvidos, assim como a pastosa e macia fala do senhor de paletó preto também já era ignorada. Passaram-se três estações desde que eles começaram a se embater. E logo o senhor de paletó preto também cessou de falar.
            E o silêncio pareceu constrangedor para ambos os falantes. Foi um momento de desestabilidade. O senhor de paletó preto olhava para todos os lados, meio frenético, e assim também fazia a senhora de lenço vermelho. A morena de belas pernas tinha os olhos fixos no sinal luminoso que anunciava as estações seguintes e o jovem que ouvia música tinha o olhar perdido no horizonte. Só voltou sua atenção novamente para os passageiros quando as belas moças que estavam em pé ao seu lado conseguiram assentos. Ele parecia ter esquecido que elas estavam lá, e seu olhar tornou a expressar desapontamento. “Merda…”.
            Ao chegar na estação terminal, onde todos haviam de sair do trem, o senhor de paletó preto mirou de forma libertina as pernas da morena de belas pernas. “Puta que pariu, que gostosa”. A senhora de lenço vermelho lançou um olhar feroz em direção a morena de belas pernas. “Vagabunda, vadia…” Esta, por sua vez, olhava apenas pra frente, cabeça erguida, corpo ereto, silhueta dançante, se esgueirando entre os passantes. “Ai que ódio desse povo nojento!” Acabou trombando com o rapaz que ouvia múcica. Este, por sua vez, ao pisar fora do trem, olhou nos rostos e nos olhos de cada um e sorriu. Parecia reflexivo, mas o desdém que lhe saltava do rosto ficou exposto, e encheu o lugar, esbarrando em cada um dos presentes ali, que estranhamente, e simultaneamente, fecharam a cara.
 


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