terça-feira, 20 de novembro de 2012

O pombo





- Ah! Que merda!
Foi só ele botar os pés pra fora da porta de casa e lá estava. Uma massa disforme de carne podre, achatada contra o asfalto quente, tostando no sol, cheirando muito mal. Um pombo, com certeza, amassado pela roda de um carro. Seria a explicação mais plausível.
- Caralho, que nojo, mano...
É... Era uma cena bem nojenta mesmo. Aquele sangue seco, coagulado, uma pasta uniforme que unia tripas e penas num quadro de violência urbana. E que fedor do inferno. Mal deu um passo pela calçada, ele sentiu o odor da podridão. Parecia que o cadáver já estava ali há muito tempo. O que seria impossível, sendo que ele havia saído de casa no dia anterior, no fim da tarde e voltado na madrugada. Não havia pombo nenhum ali naquele horário. Nem vivo nem morto. Agora havia uma dúzia deles.
- Que estranho...
Um grupo de pombos parecia cercar as entranhas do ex-companheiro. Não estavam exatamente em volta dele, mas rondando, sondando, num movimento estranho. Era como se tivessem indo em sua direção, dando uma bicada e saindo as pressas. Mas afinal, estavam comendo o cadáver?
- Pombos canibais... Tá.
Não. Não poderia ser. Parecia muito mais uma espécie de ritual funerário. Pareciam dançar de certa forma, reverenciando o morto. Os movimentos eram repetidos, quase coreografados mesmo. E assim, um a um, os pombos caminhavam desajeitados até o cadáver, faziam uma reverência com um movimento de pescoço e logo saiam, quase sempre voando baixo. Com exceção de um, o mais acinzentado deles. Estava muito sujo.
- E esse aí?
Figurava como o chefe do bando. Tinha até uma postura diferente. Se movia menos, de forma quase calculada, nunca se aproximando do morto, meio que controlando o balé dos outros. Uma cena realmente bizarra. De novo pareciam vorazes, como que devorando a massa disforme de carne, penas e tripas. Mas não, foi apenas um pequeno tumultuo. O chefe deve ter perdido um pouco o controle da dança, deveriam estar todos muito comovidos com a perda. Menos o chefe, plácido e pomposo, manco e encardido.
- Parece até um tipo detetive.
Seria uma investigação? Eram pombos peritos? Sua dança fúnebre seria a preparação pra uma vingança terrível contra o assassino humano que cometeu aquela atrocidade?
- Ai, caralho...
Essa idéia deu-lhe um arrepio. Claro que parecia um absurdo, mas de certa forma, aquela dança toda, aquele chefe, e pior de tudo, a estranha sensação de que o pombo morto deveria ser vingado, deixou-lhe com um certo sentimento de desconforto. Ele sabia que era uma grande estupidez, sabia de verdade. Mas o receio era ainda maior. E mal havia subido a rua, resolveu voltar pra casa. Deixaria a mistura do almoço pra depois. O açougue ia estar lotado mesmo.
- Caralho, eu sô um idiota mesmo...
Entrou pelo portão e foi direto a cozinha. Pegou uma vassoura velha e uma pá de recolher lixo. Correu pra fora.
- Puta merda, que nojo...
Botou a pá rente ao cadáver do pombo e com a vassoura empurrou aquela massa podre pra cima da pá. Esqueceu de levar sacola plástica, então teve que entrar em casa com o morto na pá. Colocou na sacola e deu um nó bem apertado. Ao sair pra rua de novo, pra jogar o saco no cesto de lixo, se deparou com uma ratazana que emergia de um bueiro. Ela ameaçou entrar pelo portão da sua casa, e ele, imediatamente, quase sem pensar, deu-lhe com a pá de lixo.
- Ah! Caralho! Merda! Merda!
Até o bicho parecer realmente morto, foram necessários quatro golpes. E a mesma pá que matou o rato, colocou-o noutro saco plástico. E lá foi ele, dar o mesmo fim que deu ao pombo.
- Que diazinho de merda...
Ele perdeu até o ânimo de sair. Sentou no sofá. Ligou a TV. Tirou os chinelos. Seu sossego seria garantido não fosse o terrível calor e um fedor estranho que vinha da cozinha. Ele se levantou e foi procurar a origem do mau cheiro.
- PUTA QUE PARIU!
A mesa da cozinha estava tomada por pombos. Eles dançavam ao redor de uma bandeja grande onde se via claramente uma enorme e gorda ratazana, servida com caldo de chorume e bolinhas de bosta.
         Aterrorizado, ele pegou a pá e matou todos os pombos que estavam ali. Um por um. Colocou todos em sacos plásticos, lacrando-os devidamente. Não saiu pra colocá-los no cesto. Trancou-se em casa. Prendeu a pá de lixo nas calças, fechou todas as janelas e sentou-se no sofá. Agora estava mais tranqüilo. O melhor de tudo era que já tinha mistura pro almoço.

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