-
Ah! Que merda!
Foi
só ele botar os pés pra fora da porta de casa e lá estava. Uma massa disforme
de carne podre, achatada contra o asfalto quente, tostando no sol, cheirando
muito mal. Um pombo, com certeza, amassado pela roda de um carro. Seria a
explicação mais plausível.
-
Caralho, que nojo, mano...
É...
Era uma cena bem nojenta mesmo. Aquele sangue seco, coagulado, uma pasta
uniforme que unia tripas e penas num quadro de violência urbana. E que fedor do
inferno. Mal deu um passo pela calçada, ele sentiu o odor da podridão. Parecia
que o cadáver já estava ali há muito tempo. O que seria impossível, sendo que
ele havia saído de casa no dia anterior, no fim da tarde e voltado na
madrugada. Não havia pombo nenhum ali naquele horário. Nem vivo nem morto. Agora
havia uma dúzia deles.
-
Que estranho...
Um
grupo de pombos parecia cercar as entranhas do ex-companheiro. Não estavam
exatamente em volta dele, mas rondando, sondando, num movimento estranho. Era
como se tivessem indo em sua direção, dando uma bicada e saindo as pressas. Mas
afinal, estavam comendo o cadáver?
-
Pombos canibais... Tá.
Não.
Não poderia ser. Parecia muito mais uma espécie de ritual funerário. Pareciam
dançar de certa forma, reverenciando o morto. Os movimentos eram repetidos,
quase coreografados mesmo. E assim, um a um, os pombos caminhavam desajeitados
até o cadáver, faziam uma reverência com um movimento de pescoço e logo saiam,
quase sempre voando baixo. Com exceção de um, o mais acinzentado deles. Estava
muito sujo.
-
E esse aí?
Figurava
como o chefe do bando. Tinha até uma postura diferente. Se movia menos, de
forma quase calculada, nunca se aproximando do morto, meio que controlando o
balé dos outros. Uma cena realmente bizarra. De novo pareciam vorazes, como que
devorando a massa disforme de carne, penas e tripas. Mas não, foi apenas um
pequeno tumultuo. O chefe deve ter perdido um pouco o controle da dança,
deveriam estar todos muito comovidos com a perda. Menos o chefe, plácido e
pomposo, manco e encardido.
-
Parece até um tipo detetive.
Seria
uma investigação? Eram pombos peritos? Sua dança fúnebre seria a preparação pra
uma vingança terrível contra o assassino humano que cometeu aquela atrocidade?
-
Ai, caralho...
Essa
idéia deu-lhe um arrepio. Claro que parecia um absurdo, mas de certa forma,
aquela dança toda, aquele chefe, e pior de tudo, a estranha sensação de que o
pombo morto deveria ser vingado, deixou-lhe com um certo sentimento de
desconforto. Ele sabia que era uma grande estupidez, sabia de verdade. Mas o
receio era ainda maior. E mal havia subido a rua, resolveu voltar pra casa.
Deixaria a mistura do almoço pra depois. O açougue ia estar lotado mesmo.
-
Caralho, eu sô um idiota mesmo...
Entrou
pelo portão e foi direto a cozinha. Pegou uma vassoura velha e uma pá de
recolher lixo. Correu pra fora.
-
Puta merda, que nojo...
Botou
a pá rente ao cadáver do pombo e com a vassoura empurrou aquela massa podre pra
cima da pá. Esqueceu de levar sacola plástica, então teve que entrar em casa
com o morto na pá. Colocou na sacola e deu um nó bem apertado. Ao sair pra rua
de novo, pra jogar o saco no cesto de lixo, se deparou com uma ratazana que
emergia de um bueiro. Ela ameaçou entrar pelo portão da sua casa, e ele,
imediatamente, quase sem pensar, deu-lhe com a pá de lixo.
-
Ah! Caralho! Merda! Merda!
Até
o bicho parecer realmente morto, foram necessários quatro golpes. E a mesma pá
que matou o rato, colocou-o noutro saco plástico. E lá foi ele, dar o mesmo fim
que deu ao pombo.
-
Que diazinho de merda...
Ele
perdeu até o ânimo de sair. Sentou no sofá. Ligou a TV. Tirou os chinelos. Seu
sossego seria garantido não fosse o terrível calor e um fedor estranho que
vinha da cozinha. Ele se levantou e foi procurar a origem do mau cheiro.
-
PUTA QUE PARIU!
A
mesa da cozinha estava tomada por pombos. Eles dançavam ao redor de uma bandeja
grande onde se via claramente uma enorme e gorda ratazana, servida com caldo de
chorume e bolinhas de bosta.
Aterrorizado,
ele pegou a pá e matou todos os pombos que estavam ali. Um por um. Colocou
todos em sacos plásticos, lacrando-os devidamente. Não saiu pra colocá-los no
cesto. Trancou-se em
casa. Prendeu a pá de lixo nas calças, fechou todas as
janelas e sentou-se no sofá. Agora estava mais tranqüilo. O melhor de tudo era
que já tinha mistura pro almoço.
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