É curioso observar o quanto as
pessoas falam sozinhas. Em diversos lugares, tempos e situações. Nas praias,
campos e cidades. Nas pequenas, médias e grandes cidades. Nos bares, nas ruas,
nos prédios, nos becos, nas praças, trens e trânsito. Sim, foi exatamente ali
dentro de seu carro que um motorista (que provavelmente nem sabia disso, mas)
estava sendo observado por um jovem, enquanto ele, preso no trânsito, berrava,
xingava, abria bem os olhos, dava com a cabeça no volante do carro.
O jovem logo deve ter percebido
que o comportamento feroz e revoltoso do motorista não era simples fruto do
mal-estar que aquela situação poderia gerar, afinal ficar preso no trânsito
deuma das maiores avenidas de uma cidade cosmopolita não deve ser nada
agradável. Contudo o olhar atento do
jovem parecia ter decifrado não só a mensagem que o motorista queria
transmitir, mas também o quem seria destinatário.
É aí que entra um terceiro. O
motorista xingava, berrava e esmurrava o volante porque se incomodava com o
modo como o carro da frente estava sendo guiado.
“VIADO!”
O sorriso leve e curioso do jovem
rapaz parecia dizer que ele sabia que o tal do “Viado” era o motorista do carro
da frente. O olhar desviado do jovem, que mirou o segundo carro, pareceu bem
significativo. Talvez ele estivesse apenas se deliciando da então avantajada
posição de pedestre, sentado na mesa de um boteco, posta na calçada, tomando
whisky com gelo, fumando um cigarro. Ou talvez ele realmente estivesse sentindo
que deveria cumprir seu dever.
Sim, ele foi abençoado com a
mensagem secreta, perdida, sem receptor, quase divina. Ele deve ter sentido
esse chamado na alma, porque em certo momento tremeu. Deu o último gole na
bebida, pegou o maço de cigarros e levantou-se.
Era fatal. Sua expressão era de
grande convicção, embora estranhamente branda e pacífica. Ele era o mensageiro,
o enviado, o escolhido, o messias da metrópole ruidosa e inversamente muda, da
cidade do incomunicável, das solidões e dos estresses, o arrebatador, o ser
eleito para saciar aquela ânsia que a mensagem sente tem em ser enviada,
transmitida e recebida.
E á foi ele até a janela do
carona do carro da frente. O motorista, parecendo surpreso, fitou-se de canto
de olho com um certo ar de aborrecimento no rosto. O jovem sussurrou alguma
coisa sobre o motorista do carro de trás. O outro, agora com uma imensa
interrogação no olhar, virou o pescoço e olhou pra traz. E lá estava o
motorista do carro de trás, inquieto, bravio e mal-educado. O da frente sem
dúvida deve ter visto/ouvido o “FILHO DA PUTA!” que o de trás disparou em sua
direção, sem medo. Foi a ligação direta. O milagre da comunicação estava feito.
A sacra missão do jovem messias foi cumprida. Ele imediatamente se afastou do
carro e saiu em caminhada pela calçada.
O motorista da frente, que agora
tinha muitas exclamações no olhar, abriu violentamente a porta do carro e
avançou em direção ao veículo de trás. Esmurrou o capô, gritou, xingou e
desafiou o outro motorista. Este, por sua vez, também saiu de seu carro, e num
instante socou seu adversário no olho esquerdo. E depois na barriga. E depois
na boca. Tudo muito rápido, tão rápido quanto o revide do outro motorista, na
orelha, no baço, no joelho. Uma gritaria imensa tomou conta da multidão de
motoristas até então silenciosos.
A pouquíssimos metros dalí, o
jovem mensageiro que se afastava da barbárie, acendeu um cigarro, sublime, e
prosseguiu seu caminho.
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