Ninguém
estranhava o fato de dona Zenaide falar sozinha pela rua. Era extremamente
normal. Já era senhora de idade (apesar de dizerem que era mais velha do que
aparentava), parecia que vivia sozinha numa casa velha na Aclimação. Lugarzinho
bem feio, pelo menos por fora. Por dentro ninguém jamais havia conhecido.
Talvez por isso duvidassem se ela realmente morava sozinha. Falava sempre de uma
sobrinha, que ninguém jamais havia visto. O balconista da padaria, na esquina
da quadra, disse que ela era louca mesmo, que vez ou outra surtava, ia parar no
hospital. Talvez por isso, falar sozinha não era nada.
Sabia-se que
dona Zenaide costurava, e que possivelmente não recebia aposentadoria. Ninguém
nunca havia ouvido falar de algum marido, ou qualquer coisa parecida. Quando
ela se mudou pro bairro, lá pelos anos oitenta, veio sozinha. Na verdade
dividia a casa com uma outra moça (na época eram jovens), que hoje ninguém sabe
o nome, nem onde ela está e quem dirá se ainda era viva. A cabeleireira, que se
dizia a moradora mais antiga da quadra, sabia dessa outra moradora da casa porque
costumava cortar o cabelo com ela, quando o salão ainda ficava do outro lado da
rua, quase em frente à casa pra onde dona Zenaide se mudara.
Tinha gente que
achava que dona Zenaide abandonou a família, ou fugiu de algum lugar bem
terrível. Seu comportamento fechado e arredio parecia dizer que aquela mulher
sofreu muito, e não parecia gostar muito das pessoas. Tinha três gatos. Mas
parecia não gostar muito deles também. Vivia berrando seus nomes, xingando,
derrubando (ou arremessando) coisas. Os vizinhos comentavam sempre. No salão de
beleza, na padaria, no boteco, na mercearia.
A filha da
dona da farmácia, uma japonesa bonitinha, deixou um vestido, certa vez, pra
dona Zenaide consertar. A mãe reclamava em frente ao balcão. - “Se viu que a Zenaide fez com o vestido da
minina? Cagô tudo!” – gesticulava ferozmente, com o pacote de papel higiênico que
empilhava nas prateleiras. – “E olha que eu paguei caro praquela velha! Puta que
pariu!”.
Diziam
que dona Zenaide envelheceu “rápido demais”. E que sua casa se degradou não
menos rápido. Em poucos anos já parecia que a casa (e dona Zenaide) já havia
atravessado gerações. Alguns, como a própria dona da farmácia, acreditavam que
era por causa de doença. Dona Zenaide vivia comprando remédios, de vários
tipos. Esse que parecia ser, talvez, um dos poucos motivos pra ela sair de
casa. Outros, como o cara da pizzaria, acreditavam que era por causa da
solidão. Ele, como tantos outros, conheceram dona Zenaide já sozinha, já meio
doida, falando sozinha, às vezes gritando.
Mas
o que mais incomodava a vizinhança na figura já estranha e nada amigável de
dona Zenaide era seu jeito de andar. Bizarríssimo, de fato. Meio inclinada pra
esquerda, com a mão direita um tanto imóvel, a cabeça num certo estalar.
Parecia dolorido pra ela caminhar. Talvez outro motivo pra ela não sair de
casa. Mas uma pessoa, apenas, acreditava que ela não saía de casa por causa da
tal sobrinha. Essa pessoa afirmava que já havia visto sim a menina, e que ela
sim, não a velha, estava muito doente.
Essa
pessoa era tão estranha e enigmática quanto dona Zenaide. Era um senhor mulato
que vivia sempre no balcão do boteco, tomando cachaça. Também afirmava ser
morador do bairro há muitos anos. – ‘Iiiiishi fio, cê num sabe nada que eu
passei aqui nessas budega...” – Caboclão
forte, apesar da idade, pedreiro, sempre foi pedreiro, segundo ele
próprio, veio do nordeste quando era moleque e sempre morou na região. Dizia que
conhecia dona Zenaide desde antes de ela estar sozinha. Lembrava de uma moça,
mas sempre achou que fosse sua sobrinha. A cabeleireira jurava que não. Jurava
que a moça já morava ali e dona Zenaide veio para dividir o aluguel da casa.
Sabia até que as moças (foi nos anos 80, lembra?) atrasavam o pagamento do aluguel,
pois o imóvel era do seu cunhado. Sabia também o quanto as moças bebiam no
boteco, que na época pertencia a outro dono, um árabe que morreu num assalto.
Na verdade,
Zenaide e a companheira não foram sempre reservadas, trancafiadas em casa. Isso aconteceu
alguns poucos anos depois de elas estarem vivendo juntas. A companheira já
tinha fama de tomar vários porres. O caboclão do boteco disse que ela era
linda, jovem, gostosinha. E que deu em cima dele uma vez. Ele só não fez nada
porque era a sobrinha da Zenaide - “...que tamém era gostosa, má ficô
acabada...”. Concordava com a cabeleireira quando dizia que a moça bebia bem.
Passava várias madrugadas tomando cerveja e cachaça dos outros. Até que certo
dia sumiu. O caboclo disse certa vez
(isso foi a moça do caixa da mercearia que disse) que o que acabou com as duas
foi o envolvimento com a macumba. Disse que elas freqüentavam o terreiro três quadras
dali. Fizeram mal uso dos conhecimentos que adquiriam. Ela que disse que ele disse.
Já a
cabeleireira (isso foi o balconista da padaria quem disse) tinha certeza que
foi por causa de drogas. Elas não pararam no álcool não. Deviam usar muitas outras
coisas. Deviam fumar maconha, cheirar, injetar, até crack elas deveriam usar.
Talvez por isso dona Zenaide tenha envelhecido tão rápido. Talvez por isso a outra
moça tenha sumido. Deve ter ficado muito doente. Nisso a cabeleireira e a dona
da farmácia concordam. A saúde das duas não deveria ser das melhores. A dona da
farmácia (isso foi ela mesma quem disse) acha que é DST. – “Devia é dar muito
por aí!”. A tal da outra moça deve ter morrido disso. Se é que morreu.
O caboclão
insistia que ele ainda estava lá. Ele a via às vezes pela janela. Mas só ele
afirmava isso. Era a sobrinha da Zenaide. Então, num dia desses a vizinhança
notou que dona Zenaide não apareceu mais. Ninguém mais a viu na farmácia, nem
na padaria, nem na mercearia, nem comprando cigarros com moedinhas no boteco. O
caboclão insistiu em ter visto a sobrinha na janela na semana passada. A
cabeleireira jurava ter ouvido os gritos da velha. A dona da farmácia a ouvia
chamar pela sobrinha, na manhã da quinta-feira, quando saía pra trabalhar. O
balconista da padaria disse que a ambulância tinha parado na frente da casa dia
desses. Mas ninguém tinha de fato visto dona Zenaide.
E a casa
continua fechada. As bocas caladas. Ninguém mais parecia se importar com o
possível “desaparecimento” daquela senhora maluca e barulhenta. Alguns quiseram
crer que ela tinha se mudado de novo. Outros, que tinha simplesmente se perdido
por aí, num acesso de loucura. Havia ainda os que acreditavam que a velha tinha
sim morrido, e que a tal da ambulância veio retirar seu corpo, apesar de ninguém
ter visto. O que era também contraditório com o que dizia a vizinhança, que
defendia que ela estava ali, apesar de ninguém ter visto. De qualquer forma,
com o passar dos dias, foi-se deixando de comentar o assunto. Ninguém mais
falava dela. Nem o balconista da padaria, nem a dona da farmácia, nem a
cabeleireira, nem o caboclo. Dona Zenaide foi esquecida.
Talvez seja
isso que aconteceu com ela. Desde sempre. Foi esquecida por alguém, ou por uma
família. Se refugiou naquela casa, com quem poderia ser sua única família, se
divertiu enquanto pode, mas pagou um alto preço por uma possível vingança. Caiu
nas drogas, na putaria, na magia negra, na violência da noite paulistana. Teve
todos os parceiros possíveis, cometeu crimes, foi presa. Mas um dia sofreu sua
punição. Sua família foi tomada. As drogas a levaram. Os espíritos maus a
viciaram. Zenaide sabia que a culpa era dela. A menina morreu por sua causa. E
ela nunca mais sairia de casa. E nunca mais se divertiria. Sua liberdade lhe
foi tomada, junto com sua juventude, sua sanidade e sua família.
Hoje, poucos
sabem quem foi dona Zenaide. Poucos sabem que ela morava ali, naquela casa
velha, no bairro da Aclimação. Ninguém sabe que ela foi esquecida. E sua casa também. E sua sobrinha, sua companheira de casa, também. E suas costuras mal feitas, seus remédios, seus gatos, suas gritarias. Dona Zenaide desapareceu. E mais uns grãos de poeira sopram no vento da cidade de São Paulo.
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