sábado, 17 de novembro de 2012

Dona Zenaide



Ninguém estranhava o fato de dona Zenaide falar sozinha pela rua. Era extremamente normal. Já era senhora de idade (apesar de dizerem que era mais velha do que aparentava), parecia que vivia sozinha numa casa velha na Aclimação. Lugarzinho bem feio, pelo menos por fora. Por dentro ninguém jamais havia conhecido. Talvez por isso duvidassem se ela realmente morava sozinha. Falava sempre de uma sobrinha, que ninguém jamais havia visto. O balconista da padaria, na esquina da quadra, disse que ela era louca mesmo, que vez ou outra surtava, ia parar no hospital. Talvez por isso, falar sozinha não era nada.
Sabia-se que dona Zenaide costurava, e que possivelmente não recebia aposentadoria. Ninguém nunca havia ouvido falar de algum marido, ou qualquer coisa parecida. Quando ela se mudou pro bairro, lá pelos anos oitenta, veio sozinha. Na verdade dividia a casa com uma outra moça (na época eram jovens), que hoje ninguém sabe o nome, nem onde ela está e quem dirá se ainda era viva. A cabeleireira, que se dizia a moradora mais antiga da quadra, sabia dessa outra moradora da casa porque costumava cortar o cabelo com ela, quando o salão ainda ficava do outro lado da rua, quase em frente à casa pra onde dona Zenaide se mudara.
Tinha gente que achava que dona Zenaide abandonou a família, ou fugiu de algum lugar bem terrível. Seu comportamento fechado e arredio parecia dizer que aquela mulher sofreu muito, e não parecia gostar muito das pessoas. Tinha três gatos. Mas parecia não gostar muito deles também. Vivia berrando seus nomes, xingando, derrubando (ou arremessando) coisas. Os vizinhos comentavam sempre. No salão de beleza, na padaria, no boteco, na mercearia.
A filha da dona da farmácia, uma japonesa bonitinha, deixou um vestido, certa vez, pra dona Zenaide consertar. A mãe reclamava em frente ao balcão. - “Se viu que a Zenaide fez com o vestido da minina? Cagô tudo!” – gesticulava ferozmente, com o pacote de papel higiênico que empilhava nas prateleiras. – “E olha que eu paguei caro praquela velha! Puta que pariu!”.
            Diziam que dona Zenaide envelheceu “rápido demais”. E que sua casa se degradou não menos rápido. Em poucos anos já parecia que a casa (e dona Zenaide) já havia atravessado gerações. Alguns, como a própria dona da farmácia, acreditavam que era por causa de doença. Dona Zenaide vivia comprando remédios, de vários tipos. Esse que parecia ser, talvez, um dos poucos motivos pra ela sair de casa. Outros, como o cara da pizzaria, acreditavam que era por causa da solidão. Ele, como tantos outros, conheceram dona Zenaide já sozinha, já meio doida, falando sozinha, às vezes gritando.
            Mas o que mais incomodava a vizinhança na figura já estranha e nada amigável de dona Zenaide era seu jeito de andar. Bizarríssimo, de fato. Meio inclinada pra esquerda, com a mão direita um tanto imóvel, a cabeça num certo estalar. Parecia dolorido pra ela caminhar. Talvez outro motivo pra ela não sair de casa. Mas uma pessoa, apenas, acreditava que ela não saía de casa por causa da tal sobrinha. Essa pessoa afirmava que já havia visto sim a menina, e que ela sim, não a velha, estava muito doente.
            Essa pessoa era tão estranha e enigmática quanto dona Zenaide. Era um senhor mulato que vivia sempre no balcão do boteco, tomando cachaça. Também afirmava ser morador do bairro há muitos anos. – ‘Iiiiishi fio, cê num sabe nada que eu passei aqui nessas budega...” – Caboclão  forte, apesar da idade, pedreiro, sempre foi pedreiro, segundo ele próprio, veio do nordeste quando era moleque e sempre morou na região. Dizia que conhecia dona Zenaide desde antes de ela estar sozinha. Lembrava de uma moça, mas sempre achou que fosse sua sobrinha. A cabeleireira jurava que não. Jurava que a moça já morava ali e dona Zenaide veio para dividir o aluguel da casa. Sabia até que as moças (foi nos anos 80, lembra?) atrasavam o pagamento do aluguel, pois o imóvel era do seu cunhado. Sabia também o quanto as moças bebiam no boteco, que na época pertencia a outro dono, um árabe que morreu num assalto.
Na verdade, Zenaide e a companheira não foram sempre reservadas, trancafiadas em casa. Isso aconteceu alguns poucos anos depois de elas estarem vivendo juntas. A companheira já tinha fama de tomar vários porres. O caboclão do boteco disse que ela era linda, jovem, gostosinha. E que deu em cima dele uma vez. Ele só não fez nada porque era a sobrinha da Zenaide - “...que tamém era gostosa, má ficô acabada...”. Concordava com a cabeleireira quando dizia que a moça bebia bem. Passava várias madrugadas tomando cerveja e cachaça dos outros. Até que certo dia sumiu.  O caboclo disse certa vez (isso foi a moça do caixa da mercearia que disse) que o que acabou com as duas foi o envolvimento com a macumba. Disse que elas freqüentavam o terreiro três quadras dali. Fizeram mal uso dos conhecimentos que adquiriam. Ela que disse que ele disse.
Já a cabeleireira (isso foi o balconista da padaria quem disse) tinha certeza que foi por causa de drogas. Elas não pararam no álcool não. Deviam usar muitas outras coisas. Deviam fumar maconha, cheirar, injetar, até crack elas deveriam usar. Talvez por isso dona Zenaide tenha envelhecido tão rápido. Talvez por isso a outra moça tenha sumido. Deve ter ficado muito doente. Nisso a cabeleireira e a dona da farmácia concordam. A saúde das duas não deveria ser das melhores. A dona da farmácia (isso foi ela mesma quem disse) acha que é DST. – “Devia é dar muito por aí!”. A tal da outra moça deve ter morrido disso. Se é que morreu.
O caboclão insistia que ele ainda estava lá. Ele a via às vezes pela janela. Mas só ele afirmava isso. Era a sobrinha da Zenaide. Então, num dia desses a vizinhança notou que dona Zenaide não apareceu mais. Ninguém mais a viu na farmácia, nem na padaria, nem na mercearia, nem comprando cigarros com moedinhas no boteco. O caboclão insistiu em ter visto a sobrinha na janela na semana passada. A cabeleireira jurava ter ouvido os gritos da velha. A dona da farmácia a ouvia chamar pela sobrinha, na manhã da quinta-feira, quando saía pra trabalhar. O balconista da padaria disse que a ambulância tinha parado na frente da casa dia desses. Mas ninguém tinha de fato visto dona Zenaide.
E a casa continua fechada. As bocas caladas. Ninguém mais parecia se importar com o possível “desaparecimento” daquela senhora maluca e barulhenta. Alguns quiseram crer que ela tinha se mudado de novo. Outros, que tinha simplesmente se perdido por aí, num acesso de loucura. Havia ainda os que acreditavam que a velha tinha sim morrido, e que a tal da ambulância veio retirar seu corpo, apesar de ninguém ter visto. O que era também contraditório com o que dizia a vizinhança, que defendia que ela estava ali, apesar de ninguém ter visto. De qualquer forma, com o passar dos dias, foi-se deixando de comentar o assunto. Ninguém mais falava dela. Nem o balconista da padaria, nem a dona da farmácia, nem a cabeleireira, nem o caboclo. Dona Zenaide foi esquecida.
Talvez seja isso que aconteceu com ela. Desde sempre. Foi esquecida por alguém, ou por uma família. Se refugiou naquela casa, com quem poderia ser sua única família, se divertiu enquanto pode, mas pagou um alto preço por uma possível vingança. Caiu nas drogas, na putaria, na magia negra, na violência da noite paulistana. Teve todos os parceiros possíveis, cometeu crimes, foi presa. Mas um dia sofreu sua punição. Sua família foi tomada. As drogas a levaram. Os espíritos maus a viciaram. Zenaide sabia que a culpa era dela. A menina morreu por sua causa. E ela nunca mais sairia de casa. E nunca mais se divertiria. Sua liberdade lhe foi tomada, junto com sua juventude, sua sanidade e sua família.
Hoje, poucos sabem quem foi dona Zenaide. Poucos sabem que ela morava ali, naquela casa velha, no bairro da Aclimação. Ninguém sabe que ela foi esquecida. E sua casa também. E sua sobrinha, sua companheira de casa, também. E suas costuras mal feitas, seus remédios, seus gatos, suas gritarias. Dona Zenaide desapareceu. E mais uns grãos de poeira sopram no vento da cidade de São Paulo.


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